Aqueles que Habitam o Paralelo Noturno
IV - A chave menor de Salomão
Na cozinha do apartamento de Marta, a atmosfera é densa, o tom é de velas mas não se trata de um jantar de amantes.
Claudio agradeceu enquanto acendia um cigarro:
— O jantar estava ótimo.
— Quem não gosta de pizza?
Claudio sorriu. Serviu-se de mais coca-cola.
— Então Renê está viajando com o pai...
— Tá bom! O que é agora? Fala!
— Calma, ainda estou me acostumando. Por que casou-se tão cedo?
— Me casei com 36 anos, Claudio. O Rodrigo era meu aluno, já nos conhecíamos.
— Ainda dá aulas de inglês?
— Desde que Renê nasceu, só meio período. Mas hoje pedi demissão.
Não precisou dizer nada, a cara de curiosidade dele pedia para que ela continuasse:
— O tempo está mudando, ando vendo sinais.
— Que sinais?
— Bom... pra começar, você assim de volta depois de tantos anos já é um sinal. Me magoou faltando ao meu casamento, sabia?
— Estava na Europa. Você sabe. Aprendendo.
— Tudo que precisava saber tinha aqui.
— Não vem com essa. Você me negou conhecimento.
— Neguei ser sua cúmplice. Você só pensa em vingança, desde... Sabíamos que Luar havia saído de cena. Nem sabemos se, quando ele voltar, ainda estaremos vivos. Ele dormiu. Sabe-se lá quando acordará. Pode ser daqui a cem anos. Ele é eterno.
— Não diga?! — Claudio falou com ironia. — Se ele fosse mesmo demorar pra voltar, você não teria se apressado em ter um filho. Parece que quis aproveitar a ausência dele.
— Aproveitei minha natureza, isso sim. Senão seria tarde. Que chato! Tenho de te lembrar de novo da minha idade. Faça as contas. Estou com 43 agora, moço.
— Às vezes me esqueço.
— Vou tomar como elogio. Dizem que o quarenta é o novo trinta.
Ela sorriu. Claudio correspondeu enquanto recolocava mais vinho na taça da amiga. No entanto, entristeceu assim de repente:
— Luciano podia estar aqui, rindo com a gente.
— Sente a falta dele.
— E você não? Pô! Ele era seu irmão.
— Irmão póstumo. Antes disso, meu amigo. Mas eu já aceitei.... Olha, Claudio, eu entendo você. Afinal, aquele fim de semana quase nos matou.
— Páscoa maldita. 2002 foi o pior ano da minha vida. Aquele monstro nos destruiu. Nossos amigos morreram. Ainda penso no Miguel, na Selma e até na chata da Jéssica. Só restou a gente, Marta. Luar passou como um trator por cima da gente. Nos transformou.
— Não posso dizer que ele me transformou, meu destino era esse. Sou filha da magia. Soube que Patrícia era minha mãe no momento em que a perdi. Meu destino já estava ligado ao dele muito antes de eu nascer. Além da minha mãe, descobri meu pai, e depois a história da minha família.
— Está falando do lobisomem? Outro monstro.
— Fausto salvou sua vida duas vezes.
— Mas deixou Luciano morrer. O próprio filho.
— Filho não, bisneto. Luciano e eu somos meio irmãos.
— Tá vendo só? Seu pai é seu próprio bisavô, Marta. Isso não lhe dá nojo? Pra mim é repugnante. Parece mesmo coisa de cachorro.
— Se você veio aqui para me ofender...
— Desculpe. Vim pedir sua ajuda. De novo. Em 2003 você me escreveu dizendo que recebeu o diário da sua bisavó, Elaine.
— O Diário da Sibila Rubra.
— Isso mesmo. Posso vê-lo?
— De quê adianta? Eu lhe falei que por acordo mágico apenas as sibilas podem lê-lo.
— Mas não foi só isso que herdou, não é mesmo?
— Não, recebi muita coisa além de uma arca e aquela poltrona velha na sala que não combina com nada.
— É seu trono.
— Minha trípode. Mas fala, o que quer de mim?
— Estou esperando você adivinhar.
— Não sou onisciente.
— Quero A Chave Menor de Salomão.
— Claudio, você enlouqueceu. Magia goética é muito perigosa.
— Toda magia é.
— Quer evocar demônios.
— Anjos caídos.
— Dá igual.
— Pensa comigo, Marta. Esse papo de caça vampiros não rola. Essa história de entrar na cripta do vampiro de dia e pregar uma estaca é coisa de cinema. Admito, depois de quase dez anos pensando num jeito de acabar com Luar, só consegui concluir que jamais poderia fazer isso sozinho. Nós, humanos, não podemos com os vampiros, mas podemos chamar quem possa. E os vampiros não podem com os anjos.
— Não subestime o vampiro Luar.
— Como você pode defendê-lo?
— Claudio, você sabe o quanto amo você, mas não posso ajudá-lo. Desculpa. Esqueça Luar, ele se foi.
— Não. Ele vai voltar. Eu sei disso, e tenho certeza de que você também sabe, só não quer admitir. Ninguém escapa daquele que vive para sempre.
Cúmplices no silêncio, Marta e Claudio trocaram um olhar consoante, em segredo e oculto pensamento.
[Continua na próxima terça]
LEÃO NEGRO
A busca pelo vampiro Luar
Um romance de KIZZY YSATIS