Estou de passagem neste mundo,

Mas deixo aqui o registro de minhas palavras.

Eu sou o peregrino do tempo.


quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011


Aqueles que habitam o Paralelo Noturno

XVII - Um berro de terror

A hora cruza os portões da meia-noite e um Fernando ébrio soçobra nas trevas. O mais novo discípulo de Fausto enxerga no escuro melhor do que qualquer ser humano; está mais para um cão ou gato. Seus olhos são capazes de absorver a luz mais rarefeita.

Qualquer criatura desavisada que agora supostamente surgisse e lançasse um facho em seu rosto, iria se apavorar com o brilho das pupilas dilatadíssimas do rapaz. Ainda assim, um pouco de luz lhe seria mais vantajoso para ajudar-lhe com sua busca. Não. Não aquela de encontrar a passagem secreta que o levaria para o Clube dos Imortais, mas sua busca por outra garrafa daquela safra que tanto gostou. A vela apagara-se, mas não havia morrido.

Apostou consigo que não se esquecera do isqueiro e acertou. A luz da pequena chama o cegou momentaneamente e Fernando soltou um berro de terror. Não pelo incomodo passageiro da luz que o ofuscara, mas porque juraria ter enxergado bem diante de si, numa fração de segundos antes de cegar, um rosto ceráceo acender-se na escuridão. Ergueu-se. Não. Pulou para trás atingindo a estante, quebrando garrafas e derrubando o barril em que estava sentado. Aliás, foi sobre este barril rolando em suas pernas que Fernando desastradamente caiu.

E tão rápido como caiu, o garoto se levantou, reacendendo o isqueiro para olhar a sua frente, a sua retaguarda, em ambos os lados e acima de si, sem encontrar ninguém. A respiração estava aceleradíssima. O isqueiro acabou queimando seu dedo e num reflexo Fernando o largou:

Ai!

Assustado e Furioso, Fernando mantinha os ouvidos tão aguçados que o som do isqueiro chocando-se no chão lhe pareceu o disparo de um canhão. Assim como o próprio coração que era capaz de ouvir ribombar no peito. Guiado pela audição, abaixou-se para apanhar o aparelhinho quente no exato ponto em que caíra, mas o vulto ligeiro de um sapato chutou o isqueiro para longe.

Fernando soltou um palavrão bem alto e tomou um tapa na cabeça. Levantou-se com uma agilidade que nem ele sabia possuir. Debateu-se no escuro, lançando murros para todas as direções. Acertou garrafas, ripas e parede; não mais que isso, aumentando a bagunça e o barulho em torno de si, mas o fato não o impedia de distinguir qualquer outro som. Não havia qualquer outro som. Nenhum senão os produzidos por ele mesmo.

Não podia ser Fausto que retornara, afinal não havia muito que o corifeu dos lobos saíra sem dizer para onde. Além disso, Fernando teria reconhecido seu cheiro assim que ele pusesse seus pés na entrada da mansão. Também não era alucinação, aliás, isso nem lhe passou pela cabeça. Pelo menos, não pela cabeça de um jovem que recentemente se descobriu lobisomem e que se encontrava sozinho na casa de um vampiro lendário e poderoso. Seria tolice pensar algo desse tipo. Pensou num fantasma então, já que achava a casa mal assombrada mesmo, mas trocou essa idéia por outra perspectiva. Seria ele, afinal? Ele voltou? Teria o vampiro Luar retornado?


[Continua...]
LEÃO NEGRO
A busca pelo vampiro Luar
Um romance de KIZZY YSATIS

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011


Aqueles que habitam o Paralelo Noturno

XVI - Quero morrer agora mesmo

— Quer dizer que sou filha dele duas vezes?

Elaine anuía com a cabeça enquanto Marta, mesmo estando ciente de tudo, questionava deliberadamente os pormenores como se não pudesse ou quisesse crer, e precisasse de confirmação para cada detalhe:

— Depois que Fausto a violentou, eu vim a nascer; e quando ele dormiu com Patrícia, a própria neta, eu reencarnei?

— Exatamente.

Mortificada, Marta desabou no sofá. Elaine tornou à poltrona e procurou ser gentil no tom, já que as palavras feriam:

— Nunca entenderemos plenamente o propósito dos espíritos, mas neste caso eu creio que tenha sido uma questão de linhagem. Eu fui adotada. O sangue das ancestrais devia retornar às sibilas; e isso irremediavelmente ocorreu por meio de Fausto, que é filho da Mãe Vermelha. O plano veio de Luar, mas quiça não tenha sido soprado por algo maior.

Marta não conseguia encarar sua mãe e bisavó. Balançava a cabeça em constante negação:

— Um plano cruel.

— Um mal necessário. Sacrifícios inauditos foram feitos por gerações de Sibilas Rubras em nome de nossa Ordem. Este não seria o primeiro.

— Pra mim é monstruoso.

— Hoje eu vejo como ritualístico e fundamental. O que importa é que tu és a única filha dele. És minha filhinha, minha bisneta, minha amada criança. Precisavas saber disso. Agora, mais do que nunca. Tens uma tarefa que lhe será custosa. Ergue a cabeça, menina.

Marta ergueu e viu que Elaine chorava. A senhora tinha nos olhos amor e piedade e sabia muito mais do que podia contar. Pousou sua mão sobre a da filha, respirou, e um perfume dulcíssimo encheu a sala de conforto e consolação.

Marta não era mais uma criança, nem moça, era mulher. Mais que isso, uma sibila rubra. Enxergou milênios de dignidade nos olhos da ancestral, pôs-se em seu lugar e sentiu, num átimo doloroso, o quão difícil era para Elaine ser portadora de más notícias.

— É uma punição?

Elaine não compreendera, sua expressão sincera denotava isso:

— Como assim?

— Se eu sou Virginia, eu me matei. Quando a senhora faleceu, Fausto procurou Virginia e a colocou a par de verdades que antes ela não sabia. Ela não suportou e se suicidou. Eu me matei, abandonando Patrícia, minha filhinha, aos seus cuidados. Significa que estou pagando por meu suicídio, é isso? Se for isso, eu quero morrer de novo. Quero morrer agora mesmo.

Agora Elaine pareceu mortificada:

— Não, minha filhinha — negou Elaine com benevolência. — Não é. Sabes muito bem que não. Lembra-te dos ensinamentos codificados nas entrelinhas do diário. Não cremos em castigo. Deixa essa farsa aos fanáticos. Ademais, sou eu que estou te dizendo. No entanto há algo que precisas aprender. Não se trata de uma lição punitiva, mas uma coisa... uma coisa que só compreenderás depois; que só diz respeito a ti, e que compreenderás sozinha.

Tomada de uma emoção incontrolável, Marta tornava a debulhar-se em lágrimas. Era sua alma lembrando-se de algo que ela mesma não sabia dizer.

— Minha mãe. Minha mãezinha querida. Me ajuda. Eu não entendo.

Elaine alisava seu rosto carinhosamente:

— Ah, mas vais entender... vais entender. Dá tempo ao tempo. Na tua vida anterior, fizeste promessas. E lá, onde estavas antes de aqui, aprendeste muitas coisas, só que não te lembras. Sabias que talvez houvesse sido tu quem tenha pedido ao plano superior para retornar e ajeitar as coisas? Por isso és tão especial. E eu tenho certeza que, antes que teu tempo aqui se extinga, terás cumprido tuas metas e honrado tuas promessas. E as promessas mais importantes são aquelas que fazemos a nós mesmos.


[Continua...]
LEÃO NEGRO
A busca pelo vampiro Luar
Um romance de KIZZY YSATIS